terça-feira, 2 de outubro de 2012

Ensaio Comparativo de Etnografias - Afastamentos e Aproximações


O presente trabalho tem por objetivo realizar uma comparação entre três etnografias, seus aspectos de aproximação e afastamento quanto às características mais definidoras do catolicismo, sob o ponto de vista de cada um dos autores.
São elas:
MONTEIRO, Duglas Teixeira. (1974) - Os errantes do novo século: estudo sobre o surto milenarista do Contestado. São Paulo, Duas Cidades.
Filme O PAGADOR DE PROMESSAS (1960), de Dias Gomes, direção Flávio Rangel, produção TBC.
MOURA, Margarida Maria – devoções marianas na roça e na vila – Cadernos CERU Série 2, n. 8, 1997, pgs. 121 a 134.

Inicialmente, acerca do aspecto cronológico das etnografias, pode-se dizer que possuem certo afastamento. A obra de Duglas Teixeira Monteiro possui um argumento interpretativo que segue uma estrutura que organiza o evento numa sequencia lógica: a ordem pretérita, em que a unidade ideológica era dada pelo catolicismo rústico; o desencantamento, entendido como secularização que não chega a se institucionalizar na sociedade local, e o reencantamento, onde se reconstituem os valores ameaçados pela crise. Dias Gomes, como não poderia deixar de ser, segue um enredo fílmico, isto é, constrói a trama até o clímax, seguido por cenas que conduzem a um fechar das cortinas extremamente rico de interpretações e elementos simbólicos. A professora Margarida Moura, ao descrever as devoções marianas, por sua vez, salienta a formação histórica do catolicismo mariano e suas influências em Minas Gerais desde o século XVII até seus frutos atuais.
À luz da ação religiosa vis-à-vis os atores sociais envolvidos, os relatos trazem interessantes aproximações. No caso do Contestado, o autor procura compreender o significado que as ações religiosas e os rituais tinham para os atores sociais envolvidos com o movimento. Há uma condução da luta para além dos laços locais entre fazendeiros e rebeldes, Teixeira Monteiro mostra que o esquema das lealdades hierárquicas transcende os regionalismos e se manifesta também nas relações dos coronéis com o governo estadual e deste com o governo central. Em “O Pagador de Promessas”, o filme deflagra claras relações entre a religião e atores sociais. Há a problematização da complexidade de questões sócio-culturais. A intolerância, o autoritarismo e a insensibilidade da Igreja Católica frente às práticas populares. A arbitrariedade de uma autoridade que representa o Estado – a polícia – em considerar um caso de diferença cultural em um caso policial. A voracidade da imprensa em transformar os fatos, apenas visando a repercussão nas manchetes do jornal. Um camponês em desajuste com o meio urbano, não compreendendo e não sendo compreendido na grande cidade. Finalmente, nas devoções marianas, vislumbra-se durante o período colonial um vínculo sagrado e protetor dos escravos com Nossa Senhora, por certo favorável ao estabelecimento de “um elo poderoso, permanente e uníssono entre os vários segmentos da sociedade”. 
“A mãe de Jesus Cristo constitui-se em um contraponto perfeito às dominações políticas masculinas que predominam na sociedade rural, conduzidas, via de regra, por homens ricos e fazendeiros. Este contraponto, dotado de um sentido relacional maternal/filial caracteriza a adesão das populações rurais de diversas condições à sua devoção. Dotada também de um sentido maternal x filial, constitui-se também na crença principal da classe fazendeira. Maria é esperança de liberdade para os oprimidos, é confiança no exercício da ordem pelos dominadores”. (MOURA, p. 121-122)

Assim como a cabeça da imagem da Santa não se une ao corpo, a autora constrói uma analogia da sociedade, na medida em que há um equilíbrio instabilíssimo que se complica através de segmentações sociais, culturais e raciais cada vez mais plurais. 
Sob o aspecto da apresentação de uma contraposição entre o catolicismo rural (rústico, nas palavras de Maria Isaura Pereira de Queiroz) e outro urbano, observa-se aproximações entre as etnografias. Teixeira Monteiro assinala que, no Contestado, o Catolicismo alcançou extrema autonomia diante da Igreja e do Estado, como no período de transição entre a monarquia brasileira e a Primeira República (1822/1889), vindo a eclodir revoltas messiânicas e milenaristas, como o do Contestado ocorrido entre 1912 e 1916, na região disputada pelos estados do Paraná e Santa Catarina, também contido pelas forças armadas republicanas. O Contestado se caracterizou como catolicismo popular e em sua modalidade rústica, que tem suas raízes mais importantes plantados no solo da Grande Tradição judaico-cristã, onde sobressaem, às vezes, contraditoriamente, a esperança messiânica do Reino de Deus numa terra renovada. Há um esforço no sentido de entender esse “mundo simbólico” dos sertanejos e, na medida do possível, mapear suas origens. Dias Gomes, por sua vez, retrata o conflito da religião “oficial”, em consonância com a hierarquia católica, sendo defendida pelo sistema colonial numa “tentativa de purificação da religião das manifestações de ignorância” “o catolicismo popular era reprovado como expressão de ignorância, de superstição e de fanatismo”. Esse era um dos argumentos e motivos da implantação de uma “religião purificada”, livre de “superstições” e que estivesse sob a égide do poder clerical. As devoções marianas, por seu turno, fazem crer, em um primeiro olhar que a Virgem Maria é de todos os seus devotos. Entretanto, um painel das devoções marianas nos séculos XVIII e XIX, analisa as diferentes devoções praticadas entre as elites e as classes pobres. A devoção ao Rosário foi aquela que mais se disseminou entre os escravos, posteriormente por libertos e ao final acolhida pelos pobres, tanto no âmbito rural quanto no urbano. Junto às classes mais abastadas, em especial a dos grandes fazendeiros, as preferências devocionais se concentram nas figuras de Nossa Senhora do Carmo e Nossa Senhora da Conceição. Segundo Margarida Maria Moura, através dos rituais dos altares e naves marianas durante as festas do Rosário e de outros santos, nos quais reis e rainhas mantinham-se altivamente postados ao lado do sacerdote oficiante, podemos detectar “um catolicismo rústico e popular, ex-escravo, que ocupa o espaço do Catolicismo Oficial com sua anuência e tolerância, mesmo que aquele interfira frequentemente nas soluções ainda mais populares, que os participantes da festa se esforçam em ampliar”.
Outro aspecto que pode ser identificado como fonte de análise das obras é a relação de gênero na adoração, que retrata personagem feminina, na qual há certo afastamento na obra de Teixeira Monteiro. No caso do Contestado, as relações são, sem dúvidas, predominantemente patriarcais, masculinas. Exemplo claro é o compadrio, ligado a uma figura masculina. Entretanto, embora não haja menção a uma figura feminina propriamente dita, as Marias de José Maria e João Maria remetem à figura da mãe de Jesus, permitindo que o lado feminino registre sua marca na história. No filme de Dias Gomes, a santa para quem fora feita a promessa foi Yansã (no candomblé) ou Santa Bárbara (na igreja Católica). O ente venerado é uma figura feminina. A questão de gênero sobressai na etnografia da professora Margarida, na qual a sociedade rural mineira é uma sociedade mariana, dado ser a Virgem Maria a personagem sagrada feminina mais invocada.
Avaliando-se o sincretismo religioso presente nas obras estudadas, observa-se relevantes aproximações. No Contestado, destacam-se como elementos formadores da religiosidade: católicos (virgindade), ameríndios (encantamentos), gesta carolíngia, africanos (espíritos de florestas, entidades de matas, patuás). Em “O Pagador de Promessas”, o início do filme é revelador: num terreiro de candomblé, há várias pessoas, incorporando Orixás, dançando e cantando, entre eles podemos reconhecer Oxum, Yemanjá, Omolú e Yansã. Num canto, no próprio terreiro, Zé do Burro está ajoelhado, olhando devotamente para a imagem de Santa Bárbara, ao terminar sua reza, faz o sinal da cruz e levanta-se. Zé do Burro é católico, mas não encontra problema algum em freqüentar o candomblé. Ao longo do filme, observa-se que foi no terreiro de Yansã, que no sincretismo religioso é Santa Bárbara, que Zé do Burro fez sua promessa. Por orientação da Mãe de Santo do Terreiro de Yansã, a promessa deveria ser bem grande, afinal seu fiel companheiro também era bem importante. Yansã – Bárbara foi escolhida por Zé do Burro por ser a orixá – santa das chuvas e das tempestades. Atendido por Yansã – Bárbara, a Zé do Burro só resta percorrer as sete léguas que separam seu sítio da Igreja de Santa Bárbara, carregando a cruz. Já na cidade, próximo à igreja, pelas ruas do Pelourinho, a reação da população boêmia é outra: descaso e deboche, ninguém entende seu ato, um dos presentes, de forma pejorativa diz que Zé do Burro “é um palhaço”. O sincretismo pode ser identificado nas devoções marianas no momento em que Nossa Senhora do Rosário dança para os tambores africanos. A dança, uma demonstração de culto originariamente africana, acomete uma entidade cultuada pelo catolicismo europeu. Há a presença de caboclos, marujos e catopés e Santa Ephigênia, divindade preta dos escravos.
Sob o aspecto das crenças, nota-se entre as etnografias um certo afastamento, especificamente das devoções marianas. No caso do Contestado, ao messianismo deve-se acrescentar o milenarismo. Há uma percepção da guerra do Contestado como “jogo”, por parte de seus participantes, que reside grande parte da originalidade da análise de Teixeira Monteiro. Sendo o Contestado episódio inequivocamente colorido por expectativas messiânicas (ao contrário de Canudos, onde é assunto controverso), a atividade econômica dos sertanejos não foi contínua nem normal, notabilizando-se, ao contrário, pelo saque e desperdício. Em perspectiva centrada nos valores litorâneos, republicanos e racionais isto constitui mais uma prova, portanto, do erro essencial em que viviam os rebeldes do Contestado. No filme de Dias Gomes, por sua vez, houve uma identificação por parte do público e da Igreja que Zé do Burro teria a intenção de se passar por Jesus Cristo. Ele refuta esta comparação. No final do filme, entretanto, o andarilho adentra a igreja simbolicamente crucificado, tal qual o messias. Pode-se atribuir características messiânicas a este ato, sob o ponto de vista do público (soteropolitanos, componentes da história, e expectadores do filme). No caso das devoções marianas, não se observa traços de messianismo, milenarismo ou sebastianismo evidentes.
Nota-se que, sob determinados aspectos, do ponto de vista religioso, as obras apresentam aproximações e distanciamentos.

quinta-feira, 5 de julho de 2012

Análise do documentário “Um Passaporte Húngaro”, de Sandra Kogut


INTRODUÇÃO

Este trabalho possui como objetivo realizar uma análise fílmica, por meio da exposição de algumas idéias sobre o documentário “Um Passaporte Húngaro”, de Sandra Kogut, à luz de referência teórica dos autores visitados durante o curso.
Como uma breve exposição do enredo do filme, a obra se baseia nas incursões de sua diretora como protagonista, Sandra Kogut, na burocracia estatal húngara, a fim de obter um passaporte da mesma nacionalidade de seus avôs. Trata-se de um documentário de alta carga autobiográfica, sem um roteiro propriamente dito, e, por isso, sem se furtar de casualidades, imprevistos e imponderáveis. A história se passa na filmagem de toda a busca pelo documento, registrando-se o que acontecesse.
Em grande medida, o filme busca fugir de conceitos preexistentes acerca da formação de uma identidade, migrações e dificuldades de se pertencer a uma cultura, embora seja possível notar resquícios desses elementos em algumas passagens. 
A burocracia apresentada no documentário, utilizando-se de leis húngaras supostamente válidas para a situação, revela-se frágil, relativa, atrapalhada e ineficiente no processo de concessão do documento.
O filme se inicia com um telefonema em francês, em viva-voz, realizado pela diretora ao consulado da Hungria, com a pergunta que guia toda a narrativa do filme: “Uma pessoa cujo avô é húngaro tem direito a um passaporte húngaro?”. Soma-se à dificuldade da pergunta realizada aos funcionários do consulado o fato de os pais de Sandra serem brasileiros. As cenas seguintes mostram sucessivas trocas de aparelhos telefônicos, com diferentes explicações à mesma pergunta, dando a entender que houve uma série de telefonemas, até que se pudesse obter uma resposta minimamente aceitável. A tomada seguinte mostra a filmagem de um trem partindo em viagem, indicando que Sandra partira para resolver a situação pessoalmente.
Sandra, então, encontra-se com sua avó, em um momento particular, sua refeição. Recorda-se de um desejo seu perante a família, sua vontade de obter um passaporte húngaro. É o momento que se descobre o real motivo de sua busca: a obtenção da cidadania européia. (diga-se de passagem, há uma gafe da diretora ao dizer que a Hungria “vai entrar para a Europa em 2003”. O país nunca esteve fora do continente. Pode-se supor que ela quisesse dizer “Comunidade Européia”.)
É quando surge o título do filme, envolto em uma música tranqüila. O que aparentemente remete a um ambiente familiar, uma busca pessoal.
“Um passaporte húngaro” possui dois eixos temporais. O primeiro deles é ligado ao presente da cineasta e se expressa nas negociações em torno do passaporte, cuja solicitação inicial é feita no consulado da Hungria em Paris. O outro é ligado à memória, individual e coletiva, e à história e emerge particularmente nas conversas da diretora com a avó, que mora no Rio de Janeiro, e com um casal de parentes, residentes em Budapeste – os três principais personagens da narrativa. E também nos diálogos de Kogut com funcionários dos arquivos e registros oficiais no Brasil e na Hungria.
A história contada no filme permite intersecções entre a trajetória particular da diretora com os acontecimentos na Europa na segunda metade do século XX. A busca do passaporte traz consigo certo resgate de identificação nacional, perdido à época da Segunda Guerra Mundial, por conta de uma política anti-semita.

FILME E IDEOLOGIA – A CONTRIBUIÇÃO DE PIERRE SORLIN

            “Um filme começa a nascer quando alguém propõe um assunto. Os relatos não são um filme, mas servem de pretexto” (SORLIN, 1985, p. 174). Assim Pierre Sorlin descreve a concepção de um filme. No caso da obra analisada, o mote transita entre o pertencimento a uma nação e a burocracia existente para se fazer valer legalmente tal fato. A composição das passagens constrói a contraposição existente entre se fazer um cidadão de um país e documentos e procedimentos necessários.
Segundo Sorlin, “o assunto dos filmes não é nada além do desenvolvimento de um dado inicial que não controlam os filmes; em um sentido, o assunto está “fora do campo” e o filme não trata mais que uma de suas implicações” (SORLIN, 1985, p. 176). É exatamente o que se passa com Sandra Kogut: as implicações trazidas pela proposta da autora são impensáveis – em um determinado momento, após entregar todos os documentos necessários para a obtenção do passaporte, uma conhecida húngara se mostrou surpresa ao saber que seria necessário aguardar mais um ano para recebê-lo. Trata-se de uma implicação decorrente da situação proposta pelo filme.
Afirma Sorlin: “Voltemos à distância que separa a história do relato, marcando melhor seu alcance. A anedota se forma no interior de um sistema narrativo cujos traços fundamentais já temos notado: as variações a partir desse esquema de base são numerosas: ao serem estudadas as articulações principais do relato se pode ver se existem caracteres próprios do conjunto que se estuda. A pergunta que tem que se feita é: “quais são os assuntos que voltam mais freqüentemente?”. (SORLIN, 1985, p.176). Encontra-se, no documentário, os conceitos de Sorlin ao serem confrontadas três proposições recorrentemente apresentadas: o relacionamento de Sandra com sua família, a busca do passaporte e a relação com uma burocracia desorganizada e desinformada.
Podem-se considerar temas do filme, à luz do conceito proposto por SORLIN (1985), a burocracia, a cidadania e a nacionalidade. O autor conceitua como “temas” as idéias dos objetos dos problemas evocados nos filmes ou em partes dos filmes (SORLIN, 1985, p. 177).
A história apresentada por Sandra Kogut mostra, sob o aspecto histórico, as causas da migração de sua família para o Brasil. A percepção sistemática dos temas gerais e particulares, segundo Pierre Sorlin, pode nos dar uma visão das zonas de silêncio e de consenso das questões permitidas ou proibidas, em uma palavra, dos limites impostos pelos produtores e pelo sistema político. O estudo das formas narrativas pretende estabelecer a relação com as outras formas de relatos (novelescos, históricos, políticos, jornalísticos) e precisar outros mecanismos de imposição, os encadeamentos, os silêncios particulares de uma época (p. 177). A personagem autora vive, no presente, as conseqüências de um drama político engendrado há muitas décadas.
Outra idéia forjada por Sorlin que está muito presente no documentário é o conceito de “visível”. Segundo o autor, desenvolvem-se perspectivas sobre o meio exterior que não reproduzem o mundo sensível “tal como é”, mas como vêem os realizadores. Isto é o que se chama de “visível”. (p. 178). Os recortes dos planos seqüência colocados na montagem do documentário transmitem a idéia de dificuldade burocrática, idealizada pela autora. Ainda segundo Sorlin:
“(...) os idealizadores impõem os textos com a mesma razão que a interpretação dos atores ou da ficção; o que fotografam não é aquilo que vêem, mas o que querem mostrar. Em casos semelhantes é impossível falar de visível no sentido em que se toma a palavra, o fundo é então um dos materiais da construção, inseparável dos demais. A primeira objeção nos leva a precisar que a noção de visível é entendida exclusivamente para os filmes que tratam de integrar o universo observável, e, mais precisamente, fragmentos do universo observável é dizer os filmes que possuem analogia com o mundo exterior.” (SORLIN, 1985, p. 178)
           
A composição dos planos seqüência transmite os temas propostos pela diretora.
“A história não é mais que apenas um aspecto do filme. É necessário se interessar pela construção e pela ação colocada no material fílmico.(...) A imagem não possui fidelidade; a percepção é um ato social, fixa-se e se organiza em função do que é útil e lícito ver no meio no qual nos situamos e no que queremos nos situar. (...)O filme cria um mundo projetado, no sentido de que um volume projetado sobre uma superfície plana se converte em uma forma que não é totalmente alheia ao volume e que sem embargo difere dela de maneira essencial.” (SORLIN, 1985, p. 169 - 170)

Sobre a relação com o espectador, a obra conta com uma certa idéia pré-formatada de burocracia de quem assiste. Aposta-se, do lado do público, que a idéia de obtenção de um documento da monta de um passaporte conte com um processo penoso e caro. Desta forma, o espectador é convencido sem maiores percalços de todas as etapas pelas quais Sandra Kogut passa em sua aventura. Segundo Sorlin:
“O filme coloca em cena uma relação que se estabelece constantemente com o espectador: de maneira clara ou obscura, trata-se de uma proposição que o espectador aceita ou rejeita. Estudar o que é colocado em cena ou, mais genericamente, o que se chama de construção, equivale a tratar de discernir qual estratégia social, que modelos de classificação e reclassificação atuam nos filmes.” (SORLIN, 1985, p. 170).

Além disso, a quantidade de planos diferentes em seqüência constroem uma percepção no espectador. Exemplo claro é a cena de abertura do filme, que conta com diversos aparelhos telefônicos respondendo a uma mesma pergunta com diferentes respostas. “A união de sinais oferece uma maior informação” (SORLIN, 1985, p. 183)
            Há um aspecto político relevante, que pode ser destacado do filme: a vida dos judeus à época da Segunda Guerra Mundial. Os aspectos abordados no filme referem-se à necessidade de fuga do continente europeu e da necessidade de mudança de seus nomes originais para que passassem incólumes à perseguição. De acordo com Sorlin, “a ideologia é o conjunto das possibilidades de simbolização concebíveis em um momento dado. Um filme aparece como um aspecto, um fragmento da ideologia em geral, mas também como um ato através do qual o grupo de indivíduos, ao escolherem e reorganizarem materiais visuais e sonoros, ao fazê-los circular entre o público, contribui para a interferência de relações simbólicas sobre as relações concretas.” (SORLIN, 1985, p. 171). Ao apresentar o personagem Gyuri Fabri, o filme mostra que, por algumas vezes, ele se viu obrigado a mudar de nome. De Loewinger para Friedmann (almeão) e, então, após a guerra, para Fábri (italiano) e, na Hungria, para Lajta.
Não se pode depreender unicamente do filme um tempo cronológico exato para o acontecimento de toda a narrativa, embora em um determinado momento, o funcionário da embaixada questione e Sandra afirme que já haviam se passado oito meses de espera dos documentos. Pesquisas paralelas em sítios na internet mostram que todo o trabalho teria levado dois anos[1]. O tempo fílmico, entretanto, de acordo com Pierre Sorlin,
“não é um tempo vivido, puramente subjetivo e abandonado à fantasia do espectador, regulado por mecanismos de associação precisos, cujo detalhe, geralmente, o público descuida, mas sim que são sensíveis por pouco que se preste atenção; contribui para colocar uma perspectiva, um em relação aos outros, os elementos que constituem o filme. (...) O tempo não é uma peripécia, um detalhe, um recurso da ficção; presente na imagem, traduzido pela construção, confunde-se com o conjunto do filme, o que faz que se esqueça facilmente. Situa cada realização em uma perspectiva geral que é fundamentalmente ideológica, posto que implica uma relação entre a história narrada pelo filme e a inexistência da história.” (SORLIN, 1985, p. 190-191 e 194).
O documentário fornece uma idéia adicional do tempo decorrido também quando informa que, depois de entregue toda a documentação, foi necessário aguardar um ano para a obtenção de um documento provisório.
A construção da realidade fílmica é um processo complexo e deve abranger perspectivas definidas. Para Pierre Sorlin, “a construção não é um simples alinhamento de fotogramas, mas um agenciamento de formas fílmicas através da qual se encontram manifestados o tempo, o espaço e o sistema social, ou relações entre grupos e indivíduos.” (SORLIN, 1985, p. 192). O tempo, espaço e sistema social mostram-se claros em “Um passaporte Húngaro”. Embora a busca da autora não demonstre uma marcação definida com relação ao tempo gasto, por outro lado, a noção temporal se faz mais presente e relevante quando se relaciona as dificuldades do presente como conseqüência de problemáticas de meados do século XX. O sistema social e as relações entre grupos e indivíduos, àquela época, mostravam-se em reconfiguração profunda, decorrente da Segunda Grande Guerra.
Outro conceito cunhado por Pierre Sorlin diz respeito a “pontos de fixação”. Trata-se de
“um problema ou fenômeno que, sem estar diretamente implicado com a visão, aparece regularmente em séries fílmicas homogêneas e se caracteriza por alusões, por repetições, por uma insistência particular da imagem ou de um efeito de construção. (...) Em torno de um ponto de fixação temos descoberto um vasto sistema relacional. Quando se propõe a síntese, chega-se a uma série de separações que parecem muito simples. (...) Uma mesma série fílmica traz numerosos pontos de fixação, que não tem a mesma intensidade e se aderem a “zonas sensíveis” muito distintas.” (SORLIN, 1985, p. 196, 200, 201).

O ponto de fixação notório, no caso em análise, é o sistema burocrático, aparentemente idêntico, presente no Brasil, França e Hungria. Constrói-se uma relação padrão entre o Estado e o indivíduo, independentemente de sua nacionalidade ou localização.

            O sistema criado no filme para estabelecer a relação entre uma pessoa e sua nacionalidade transmite burocracias e processos desencontrados. Esse sistema relacional é conceituado por Pierre Sorlin “pondo em relação indivíduos e grupos, cada filme constitui, no interior do mundo fictício da tela, hierarquias, valores, redes de intercâmbios e influências.”. (SORLIN, 1985, p. 202). O conceito pode ser encontrado do documentário tendo em vista o relacionamento da personagem autora com sua família e com os burocratas. Em nenhum momento ela tenta buscar eventuais privilégios, que poderiam ser provenientes de contatos no alto escalão de governos, por exemplo. Assim, ela se coloca como uma pessoa comum, em busca de um passaporte, conseguindo, assim, uma identificação com o espectador.
            Os conflitos gerados pela situação criam inevitavelmente “rótulos” de participação aos personagens. Com relação a este ponto de vista, SORLIN esclarece:
“Que face tomam as funções essenciais do relato, heróis, aliados, adversários e em que contexto, segundo que regras são confrontados? A organização do relato nunca é a simples colocação em ação de algumas das vistas abertas pela lógica narrativa: revela, através do desenvolvimento de uma razão, um juízo sobre os feitos passados; é plenamente ideológica na medida em que, partindo de uma situação, reconstrói seus dados fundamentais e depois interpreta seu desenvolvimento. (SORLIN, 1985, p. 203)

Categorizando-se as características do filme à luz do modelo proposto por Pierre Sorlin, conclui-se que se trata de um desafio familiar e político-social (na medida em que a personagem persegue suas raízes para, assim, obter legalmente um documento, um atestado de nacionalidade). Os grupos implicados no desafio são: uma autora-protagonista, descendente de húngaros (com a função de buscar seus objetivos e provocar o conflito como parte fundamental da história); a família da autora-protagonista (com uma função coadjuvante de auxiliar na busca) e a burocracia de um país (com uma função antagônica e até mesmo caricaturada). As transferências e alterações não são ocultas se dão nas negociações de Sandra com os funcionários dos governos; os conflitos são subentendidos nas reações de interrogação dos empregados. A relação existente entre Sandra e sua família, seus aliados em busca de seus objetivos,  é de intimidade e cumplicidade. Há, por parte desses auxiliares, eventuais intervenções, como o telefonema que questionou a validade do documento emitido. Os enfrentamentos são evitados. Ainda que as respostas obtidas dos consulados sejam absurdas, a autora prefere deixar o julgamento ao espectador.
Ainda segundo Sorlin, “dado que põe frente a frente dois personagens, todo relato define ao menos parcialmente uma forma de intercambio. Trata-se de uma construção arbitrária que, de maneira mais ou menos elaborada, trabalha sobre três términos fundamentais: conivência, oposição e ignorância recíproca”.  (SORLIN, 1985,p. 205). No caso da relação com os burocratas, Sandra prefere manter-se aparentemente ignorante (deixando o julgamento nas mãos do espectador), enquanto eles tentam sustentar freqüentemente, uma postura de oposição ao pleito.

Em suma, o filme possui extrema aderência aos conceitos forjados por Pierre Sorlin. Concluindo como objetivo geral de seu texto, o autor define que
“os filmes são como expressões ideológicas, ou seja, manifestações parciais do sistema de simbolização que é a ideologia de certa época. Negamos a limitar a ideologia como uma soma de características ou de definições. (...) Trata-se de revelar a ideologia na seleção de pontos de vista fotografáveis e em sua reutilização, a expressão ideologia não é a escada com a qual o burocrata fica no alto e os desempregados abaixo, nem a olhada sobre os grandes conjuntos, tampouco a contraposição de campos, nem a panorâmica: é uma colocação na relação entre dados elementares e, mais genericamente, a combinação das unidades de diversos graus sobre a totalidade do filme, o que quer dizer que a análise ideológica de um filme não se separa de um grande trabalho sobre sua construção” (SORLIN, 1985, p. 190)

SOMATÓRIA DE PERCEPÇÕES

À luz da teoria de Merleau-Ponty, sobre a somatória de percepções, o autor afirma que os filmes devem ser considerados como objetos a se perceber. Para Merleau-Ponty o “sentido de uma imagem depende, então, daquelas que a precedem no correr do filme e a sucessão delas cria uma nova realidade, não equivalentes à simples adição dos elementos empregados” (MERLEAU-PONTY, 1983, p. 111).
O filme analisado nos dá alguns exemplos dessa teoria. Nota-se, do passar da personagem por diversos funcionários públicos, a representação e da exteriorização da burocracia existente. O objetivo é causar no espectador a percepção de dificuldade, desorganização e falta de informações adequadas. As seqüências legitimam o discurso construído pela autora.
Há também uma linha cronológica clara de acontecimento dos fatos, embora haja eventuais incursões trazidas do passado em narrativas posteriores. Há uma ordem seqüencial temporal na busca de informações no consulado, conversas com a avó, ida à Hungria, conversas com familiares da Hungria e conversas com funcionários do consultado húngaro e da imigração brasileira.
Os eixos temporais, apesar de distintos, por algumas vezes, sobrepõe-se. Conversas tidas com a avó no Brasil são deslocadas para momentos em que Sandra está na Hungria.

MONTAGEM

Na mesma chave analítica utilizada por Merleau-Ponty, os recursos de decupagem do filme podem ser analisados com base nos conceitos de André Bazin, presentes em “A evolução da linguagem cinematográfica”.
De acordo com o texto, pode-se considerar Sandra Kogut uma diretora que trabalha sobre imagens.
“Por imagem, entendo de modo bem geral tudo aquilo que a representação na tela pode acrescentar à coisa representada. Tal contribuição é complexa, mas podemos reduzi-la essencialmente a dois grupos de fatos: a plástica da imagem e os recursos da montagem. Na plástica, é preciso compreender o estilo do cenário e da maquiagem, de certo modo até mesmo da interpretação, aos quais se acrescentam a iluminação e por fim, o enquadramento que fecha a composição. Quanto à montagem [...] ela constituía o nascimento do filme como arte: o que o distingue realmente da simples fotografia animada. Na realidade, enfim, uma linguagem”. (BAZIN, 1985, p. 67)

            Com esse trecho de Bazin, pode-se analisar “Um passaporte Húngaro” de outra perspectiva. De acordo com a plástica, percebe-se que os cenários do filme são bem definidos, variando entre a casa da avó de Sandra, a casa de seus parentes na Hungria, os consulados húngaros (na França e no Brasil), o departamento de imigrações na Hungria e no Brasil.
No filme não há um tipo de maquiagem específica, muito por conta da estratégia de filmagem. O mesmo ocorre para o tipo de iluminação, que é natural, no decorrer do filme. Já os enquadramentos se caracterizam em algumas formas distintas: a figura da diretora-atriz raramente aparece. Há planos fechados em suas conversas com a avó, bem como nos depoimentos dos funcionários da imigração, fazendo com a atenção fique presa ao discurso da personagem; há planos relativamente abertos nas conversas com seus parentes na Hungria. O momento da conversa durante a refeição da avó mostra a intimidade entre elas. Com relação aos familiares distantes, os diálogos se iniciam com certo tom de formalidade, que vão se tornando mais abertos com o passar do tempo. A impressão obtida é de uma relação ainda carente de intimidade.
            Com relação à montagem, há momentos controversos entre as explicações dadas por funcionários da embaixada húngara com relação ao rol de documentos necessários para obter o passaporte. Com esta seqüência, a diretora obtém a exposição de maneira direta da falta de regras com relação a este procedimento.

TIPOS DE DOCUMENTÁRIOS

            NICHOLS (2001) propõe alguns modelos de classificação para os documentários. Tais categorizações, entretanto não dão conta de abranger todos os casos. Dos tipos criados pelo autor, há incontáveis exemplos de documentários nos quais há identificação com dois tipos, bem como há casos de não adequação a nenhuma das propostas.
            Considerando-se estas ressalvas, a categorização que mais abrange o documentário “Um Passaporte Húngaro”, dentre os apresentados por Nichols, é o modo performático. Segundo o autor:
“Como o modo poético, o modo performático suscita questões sobre o que é o conhecimento (...). O documentário performático endossa o conhecimento como algo bem descrito, concreto e material, baseado nas especificidades da experiência pessoal, na tradição da poesia, da literatura e da retórica. Ele demonstra como o conhecimento material propicia o acesso a uma compreensão dos processos mais gerais em funcionamento na sociedade. (...) O documentário performático sublinha a complexidade de nosso conhecimento do mundo ao enfatizar suas dimensões subjetivas e afetivas.” (NICHOLS, 2001, p. 169)

            Tomando-se as características do filme como instrumento de análise, tenta-se afastar da realidade, de maneira a organizar uma estrutura teórica de forma racional. Os demais modelos sugeridos por Bill Nichols podem, das seguintes maneiras, abordar “Um passaporte Húngaro”:
            Características do modo observacional/observativo: imagens que mostram a interação dos atores sociais, que faz com que os personagens sejam surpreendidos. Essa característica faz com que os espectadores tenham uma sensação de desconforto, pois pode se deparar com cenas inusitadas. É o que ocorre com freqüência no documentário nos inúmeros tipos de explicação fornecidos pelos funcionários para obtenção do visto.
            Características do modo reflexivo: Tentativa do cineasta de travar um diálogo com os espectadores, não só pelo mundo histórico, no qual o filme se passa, mas também sobre as questões e os problemas de representação. Para se pensar neste ponto, é preciso se indagar qual foi a idéia do autor ao construir a personagem da maneira que ele construiu; qual foi o cenário em que o filme é passado.
“Esses filmes tentam aumentar nossa consciência dos problemas de representação do outro, assim como tentam nos convencer da autenticidade ou da veracidade da própria representação.”. (Nichols, 2001)

UTILIZANDO UMA LEITURA DOCUMENTARISANTE

            Ao analisar o filme sob as perspectivas de Roger Odin, busca-se descrever uma leitura documentarisante. O discurso deve ser construído tomando-se Sandra Kogut como a Enunciadora real, pois é a responsável por todo o discurso do filme. Ela própria é tomada como um Enunciador pressuposto real (realidade pressuposta do Enunciador).
            Para realizar uma leitura documentarisante de fato, entretanto, faz-se necessária atenção a quatro modos de produção de leituras, duas internas ao filme e duas externas:
1) Produção de leituras internas:
            Produção de leitura pelos créditos: há legendas que dão créditos à diretora Sandra Kogut no início do filme, mas não há clareza prévia quanto à proposta documental; há nome de atores, bem como créditos no final do filme.
            Sistema estilístico do filme: possui certas característica típicas de documentário, apresenta cenas de entrevistas, mas não há legendas com o nome dos personagens. Estas conversas, atreladas à outras imagens constroem a história  e os personagens do filme.
2) Produção de leituras externas:
            Produção individual: Odin afirma que todos os filmes são passíveis de uma leitura documentarisante. Mesmo filmes de ficção não possuem o poder de bloquear totalmente esse tipo de leitura. É possível tomar como Enunciador real a personagem principal, Sandra Kogut que, inclusive, em algumas passagens do filme participa dos diálogos nas conversas apresentadas.
Modo externo de produção de leitura: a análise é baseada em conceitos sociológicos e teorias sociológicas sobre o cinema. Dessa forma, produz-se uma leitura documentarisante institucional. “A existência de filmes demandando serem lidos segundo um modo de leitura determinada, nos conduz naturalmente a tentar precisar como se efetua, nesses próprios filmes, a exibição documentarisante.”. (Odin, 1984)
Podemos dizer, ainda segundo Odin, que “Um passaporte Húngaro” é um filme que pertence ao conjunto documentário, pois em sua estrutura e em sua instrução podemos por em prática as idéias descritas acima sobre a leitura documentarisante.


Bibliografia:

·         BAZIN, André. L’Évolution du langage Cinématographique, p. 56-80. In ________. Qu’est-ce que le cinema? Paris, Les Éditions du Cerf, 1985.
·         MERLEAU-PONTY, Maurice. O cinema e a nova psicologia. In: Xavier, Ismail (org.) A experiência do cinema. Graal, 1983.
·         NICHOLS, Bill. What typoes of documentary are there? In: ________. Introduction to documentary. Boomington, Indiana University Press, 2001.
·         ODIN, Roger. Film documentaire, lecture documentarisante. In: ODIN, R. e LYANT. J. C. (ed.): Cinémas et réalites. Saint-Etienne: Universidade de Saint-Etienne, 1984.
·         Revista “Galáxia, Revista Transdisciplinar de Comunicação, Semiótica e Cultura”, v.7. São Paulo: Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica – PUC, p.75 - 84, 2004. Disponível em http://www.pos.eco.ufrj.br/docentes/publicacoes/clins_2.pdf
·         SORLIN, Pierre. Sociologie du Cinéma. Paris, Aubier, 1982. Terceira parte, II Filme e Ideologia, estabelecimento de uma amostra, a construção tempo-espaço, pontos de fixação, sistemas relacionais. P. 199-205, 218-242.


quarta-feira, 13 de junho de 2012

TESES SOBRE O CONCEITO DE HISTÓRIA WALTER BENJAMIN (escrito por volta de 1940)


É inevitável: estamos à mercê do materialismo histórico. De maneira fatalista, esta entidade criada por Marx escreve o rumo da história. Ela está por trás da manipulação do fantoche, os atores sociais, como meios e mecanismos de ação. À luz da teleologia, as relações dos fatores de produção com as relações de produção e a determinação que esta relação possui na superestrutura define o telos.
Qual é a relação que temos com o futuro? Ilusões, projeções de felicidade que poderiam ter sido realizadas. Tivéssemos cumprido essas aspirações, seríamos felizes. Estaríamos salvos. Hoje vivemos às sombras dessas construções.
A história toma a imagem do passado como estudo. Invariavelmente não se sabe tudo, o que dá sabor ao labor. Imaculado para quem o faz? Fazemo-nos sobre estruturas já erigidas. O rito de passagem é despercebido, o natural social. A cada geração foi-nos concedida uma frágil força messiânica para a qual o passado dirige um apelo. Esse apelo não pode ser rejeitado impunemente. O materialista histórico sabe disso.
A luta de classes estabelece o bruto e o material; sem eles não há o refinado e o espiritual. Não se trata de um prêmio, mas fruto das relações: a coragem, a confiança, o humor, a astúcia, a firmeza. Elas, sim, questionarão sempre cada vitória dos dominadores.
O estudo do presente permite sua própria mudança. Não está estabelecido, portanto. O passado, quando reconhecido como tal, passa a ser objeto da história, cristalizado. O historicismo se separa do materialismo histórico quando afirma que a verdade nunca lhe escapará.
Estudar o passado significa conhecê-lo não exatamente como ele foi, mas uma de suas reminiscências. O materialismo histórico busca uma imagem do passado que represente perigo imperceptível ao sujeito histórico, sem que ele tenha consciência disso. Em cada época, é preciso arrancar a tradição ao conformismo. Os mortos também não estarão em segurança se o inimigo vencer.
O historiador deve romper com as construções que possui do período histórico posterior ao que estuda. Este é o oposto do materialismo histórico, que deve se basear nas consequências das relações ocorridas. O perdedor é preterido pelo historiador, ao contrário do materialista histórico. A cultura fora forjada por barbáries, bem como seu processo de transmissão. Por isso o materialista se desvia dela; considera sua tarefa escovar a história a contrapelo.

Os políticos do fascismo, para Walter Benjamin, possuem as seguintes características: obtusa fé no progresso,  confiança no apoio das massas e subordinação servil a um aparelho incontrolável.

Há um distanciamento da consciência humana da realidade, que Marx chamou de alienação. Benjamin critica a social democracia, por ser um processo desgarrado da realidade. O materialista histórico deixa com os outros a tarefa de se esgotar no bordel do historicismo com a meretriz “era uma vez”.

quarta-feira, 4 de abril de 2012

Reconstruindo o Marxismo - Eric O. Wright, A. Levine e E. Sober


Materialismo histórico clássico

Uma das principais contribuições de Marx foi uma proposta de Teoria da História, baseada no Materialismo histórico (MH).
O curso da história humana, para KM, pode ser dividido em uma série de períodos distintos, cada um deles caracterizado por um conjunto distinto de relações de propriedade e controle sobre os recursos produtivos, isto é, as relações sociais de produção.
As relações de produção explicam as propriedades essenciais das instituições políticas e ideológicas da sociedade, sua superestrutura, e são, elas também, explicadas pelo nível de desenvolvimento da tecnologia da sociedade e pela organização em geral do processo produtivo, suas forças de produção. O que dá à história sua direção é a estrutura causal que une as forças de produção, as relações de produção e a superestrutura.


O marxismo do século XX, em alguma medida, se opõe a algumas proposições de KM.

Materialismo histórico, diferente do pensamento dos marxistas do século XX:
- possui um caráter determinístico
- possui alto grau de abstração: os pensadores estavam mais interessados pelo papel da atividade humana (coletiva e individual) no que se refere à transformação da realidade
- oposição política, específica à realidade de cada região
- primazia causal da força sobre as relações de produção, sugerindo uma política economicista – neste sentido, há oposição por unanimidade (para KM, parece que a transformação social depende primeiro do desenvolvimento das forças produtivas, e somente então da transformação das relações de produção. Os marxistas ocidentais, ao contrário, procuram enfatizar a transformação das relações de produção, dando comparativamente pouca importância ao desenvolvimento das forças produtivas)

Assim como KM, entretanto, marxistas da II Internacional acreditavam que seria errada a construção do socialismo em países subdesenvolvidos quando da ausência de revoluções socialistas bem sucedidas nos grandes centros. A vitória dos bolcheviques na Rússia fez parecer que a estratégia deveria ser começar pelos países menos desenvolvidos.

Stalin e Trotsky: a transformação socialista deve primar pela política socialista que rege as forças produtivas da sociedade e seu desenvolvimento.

O pensamento marxista ocidental afastou-se da experiência russa das forças de produção (controladora, tecnocrática, autoritária, burocrática, centralizadora, coletivizadora, estatizadora). Também, em alguns momentos, afastou-se das posições assumidas pelo oficialismo marxista.

Por esses motivos, a maioria dos marxistas ocidentais se tornaram hostis ao materialismo histórico.

Obra de G. Cohen (GC) sobre a Teoria da História baseada no Materialismo Histórico:

GC acredita que há aspectos que devem ser considerados.

MH:
1- TESE DA PRIMAZIA (GC): o nível de desenvolvimento das forças produtivas, numa sociedade, explica o conjunto das relações sociais de produção, a “estrutura econômica”, dessa sociedade.
2- TESE DA BASE/SUPERESTRUTURA (GC): a estrutura econômica de uma sociedade, sua base econômica, explica as superestruturas.

GC: ambas as explicações são funcionais. O autor as compara com as explicações de BM nas ilhas Trobriand.

Fato disposicional: [RP => uso e desenvolvimento das FPs.]
Explicação funcional: [RP => uso e desenvolvimento das FPs] => RPs.
Tese da Primazia: Nível das FPs => [RPs => uso e desenvolvimento das FPs] => RPs.

Tese da Primazia:
Tese 1 (COMPATIBILIDADE): Um determinado nível de desenvolvimento das forças produtivas somente é compatível com um limitado alcance de relações de produção.
Tese 2 (DESENVOLVIMENTO): dado que as forças de produção tendem a se desenvolver através do tempo.
Tese 3 (CONTRADIÇÃO): as forças eventualmente alcançariam um nível em que elas não seriam mais compatíveis com as relações de produção existentes.
Consequencias:
- as RPs tolhem as FPs. O exemplo dado é que não haveria estabilidade entre uma sociedade escravista e tecnológica, pois seria necessário um grau de cultura alto para uma sociedade tecnológica.
Incompatibilidades entre FPs e RPs: de uso e de desenvolvimento

Premissas:
- seres humanos são racionais, no sentido de poderem se adaptar os meios aos fins
- seres humanos defrontam-se com uma necessidade coercitiva e trans-histórica de desenvolvimento das forças produtivas quando as forças são impedidas pelas relações, os seres humanos terão interesse em transformar as relações.
- este modelo só é válido em uma sociedade de classes, na qual há mais valia, investida no desenvolvimento das FPs.

Tese 4 (CAPACIDADE): existe a possibilidade de os seres humanos possuírem a capacidade de transformarem as RPs.
Tese 5 (TRANSFORMAÇÃO): podendo realizar a transformação das RPs para restaurar a compatibilidade entre FPs e RPs.
Tese 6 (OTIMAÇÃO): as RPs serão substituídas por novas RPs que sejam as melhores para desenvolver as FPs.

CONCLUSÃO: o MH sustenta que, a longo prazo, à medida que as compatibilidades forem estabelecidas ou restabelecidas, o mundo constituído pelas FPs e RPs será o melhor dos mundos possíveis. J (irônico...!)

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CRÍTICAS:

Tese da Compatibilidade: por que não poderão existir relações de produção baseadas em classes capazes de desenvolver as forças produtivas indefinidamente?
Esta versão não pode ser defendida, uma vez que as crises tornam-se inexistentes, pois sempre há adaptações. Há uma irracionalidade no uso da força de produção humana por parte do capitalista.
Tese do Desenvolvimento: é possível que a estabilização seja dada pela superestrutura e não pela mudança das RPs.
Tese da Contradição: se não houver uma classe que queira mudar a situação, nada ocorre.
Tese da Capacidade: as capacidades surgem junto com os interesses, porque as pessoas (racionais) apostarão nas classes que lhes prometem um futuro melhor. As pessoas não tem consciência de sua situação e possuem expectativas razoáveis sobre as consequências que lhes advirão pelo fato de viverem sob relações sociais diferentes.

Bibliografia:
WRIGHT, E. O.; LEVINE, A. & SOBER, E. (1993), Reconstruindo o marxismo: ensaio sobre a explicação e a teoria da história. Petrópolis, Vozes.

Giddens e a Teoria da Estruturação

A teoria da estruturação nasce na mudança do eixo da teoria social dos EUA (com Parsons) de volta para a Europa. Os três conjuntos básicos de questões neste momento, e dos quais a teoria de Giddens se preocupa são:
- ênfase no caráter ativo, reflexivo da conduta humana – rejeição da tendência do consenso ortodoxo de ver o comportamento humano como resultado de forças que os atores não controlam nem compreendem
- atribuição de um papel fundamental à linguagem e às faculdades cognitivas na explicação da vida social
- declínio da importância das filosofias empiristas da ciência natural tem implicações profundas nas ciências sociais
O enfoque do autor é nas sociedades modernas, com grande inclinação sociológica, embora considere sua teoria social e não apenas sociológica.
A principal preocupação da teoria social é idêntica a das ciências sociais: a elucidação de processos concretos da vida social.
O autor considera duas proposições no estudo das ciências sociais:
- a explicação é contextual
- a descoberta de generalizações não é a totalidade nem a finalidade suprema da teoria social
Ou seja, aliando-se as premissas acima, o objeto de estudo pode ser alterado pela própria pesquisa (ou pela ciência social).
A tradição de Parsons, estrutural-funcionalista traz consigo o objetivismo e o naturalismo. Em contraposição àqueles que adotam uma postura subjetivista, influenciados pela hermenêutica e pela fenomenologia.
Na teoria da estruturação, Giddens permite a existência de um sujeito descentrado, mas sem que isso implique a eliminação da subjetividade. A contribuição da linguagem, entretanto, é encarada pelo autor com ressalvas.
Para o autor, agentes ou atores humanos são similares. Possuem como aspecto inerente do que fazem, a capacidade para entender o que fazem enquanto o fazem. As capacidades reflexivas do ator humano estão caracteristicamente envolvidas, de um modo contínuo, no fluxo da conduta cotidiana, nos contextos da atividade social. A reflexividade, entretanto, opera apenas parcialmente num nível discursivo. O que  os agentes sabem acerca do que fazem e de por que o fazem – sua cognoscitividade como agentes – está largamente contido na consciência prática, que está contida em todas as coisas que os atores conhecem tacitamente sobre como “continuar” nos contextos da vida social sem serem capazes de lhes dar uma expressão discursiva direta.
Consciência prática é um dos principais temas do livro e deve ser distinta de consciência (discursiva) e do inconsciente. O autor adota uma versão modificada da psicologia do ego associada ao eu, relacionando-a diretamente com o conceito de rotinização.

O cotidiano é o caráter rotinizado que a vida social adquire a medida em que se estende entre o tempo e o espaço.
O autor diferencia consciência prática, consciência (discursiva) e inconsciência, no seu modelo. O que os agentes sabem acerca do que fazem e de por que o fazem – sua cognoscitividade como agentes – está largamente contido na consciência prática.
Rotinização: vital para os mecanismos psicológicos por meio dos quais um senso de confiança ou de segurança ontológica é sustentado nas atividades cotidianas da vida social. A natureza repetitiva de atividades empreendidas de maneira idêntica dia após dia é a base material do que o autor chama “caráter recursivo da vida social”. 

O Caráter recursivo é, portanto, a natureza repetitiva e idêntica das atividades do dia a dia – recriação constante das propriedades estruturadas da atividade social – via dualidade de estrutura – a partir dos próprios recursos que a constituem.
A rotina introduz uma cunha entre o conteúdo potencialmente explosivo do inconsciente e a monitoração reflexiva da ação que os agentes exigem.
Uma análise goffmaniana, de acordo com Giddens poderia ser a articulação de fenômenos que fazem a discussão do inconsciente: caráter situado da ação no tempo-espaço, rotinização da atividade e a natureza repetitiva da vida cotidiana.

Os indivíduos estão posicionados no fluxo da vida cotidiana, no tempo de vida que é a duração de sua existência e de um tempo institucional, a estruturação supra-individual de instituições sociais (aspecto durkheimiano do pensamento do autor).
Cada pessoa está posicionada em um um modo múltiplo, dentro de relações sociais conferidas por identidades sociais específicas, essa é a principal esfera de aplicação do conceito de papel social.
E não são apenas os indivíduos que estão posicionados (com relação ao outro e com relação a serialidade de encontros no tempo-espaço); os contextos de interação social também estão posicionados.
Os locais não são apenas locais, mas cenários de interação (interacionismo simbólico de Erwin Goffmann).
Regionalização com forte ressonância psicológica – ponto de conexão entre Foucault e Goffman, ambos atribuem grande importância as linhas social e historicamente flutuantes entre ocultamento e revelação, confinamento e exposição.
As mudanças sociais são vistas através de duas perspectivas: sistemas inter-sociais e extremidades do tempo-espaço, que o autor considera as duas componentes do conceito de “sociedade”.
Sistema social: conceito semelhante ao de ecossistema, isto é, é de difícil mensuração e pode ser avaliado por sua “sistemidade”, que acho que pode ser visto como um aspecto de integração dos atores.
Outros conceitos importantes: coerção, estrutura, princípios estruturais. As referencias de análise são as sociedades tribais, as sociedades divididas em classes, os Estados-Nação modernos e sua associação com o capitalismo industrial.
A busca de uma teoria de mudança social é algo condenado.
Conceitos de episódio e tempo mundial, em busca de uma hermenêutica para a mudança social mais adequada que os evolucionismos adaptados (incluindo-se o materialismo histórico).
A teoria da estruturação se ocupa de mudanças relevantes, tais como a formação de cidades em sociedades agrárias ou a dos primeiros estados.


A principal hipótese do projeto é que a mudança do eixo da discussão política para o meio ambiente é uma alteração relevante na teoria social contemporânea.


Bibliografia:
GIDDENS, Anthony. Constituição da Sociedade, A - Editora Martins Fontes, 2003

Teoria Tradicional e Teoria Crítica - Max Horkheimer e Theodor Adorno (1937)

A Ciência Social tem o poder de desconstruir lógicas tomadas como certas. Simplesmente (ou não tão simplesmente assim) demonstrando o quão cultural são as convicções pessoais.
Uma teoria que consegue ir ainda além dessa desconstrução foi preconizada por Horkheimer em 1937. A proposta não poderia ter nome mais adequado que Teoria Crítica.
Proponho abaixo algumas anotações, transcrições e reflexões sobre o brilhante texto de Max Horkheimer.

terça-feira, 26 de julho de 2011

Ensaio Analítico – Violência nas Relações Homoafetivas - Agressões a homossexuais

Contextualização

Acontecimentos envolvendo violência entre grupos que pregam intolerância a relacionamentos homoafetivos têm tomado grande espaço na agenda de discussões tanto na mídia quanto no poder público, o que justifica a relevância da apresentação do tema. Declarações polêmicas de representantes do Poder Legislativo (Deputado Federal Jair Bolsonaro e da Deputada Estadual Fluminense Myriam Rios, por exemplo) colocam opiniões preconceituosas e fomentam posicionamentos contrários à liberdade sexual.

As estatísticas disponíveis sobre agressões motivadas por intolerância devido à manifestação pública de opção sexual têm mostrado um aparente decréscimo nos últimos anos. De acordo com o Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo, em 2002, foram registrados 126 casos; esse número saltou em 2004 para 157, mas voltou a cair para 78 casos em 20051. Entretanto, as informações são escassas e, invariavelmente, parciais para se estabelecer um estudo com conclusões mais precisas quanto ao tema.

Metodologicamente, não é possível atrelar de maneira precisa a causa da intolerância às agressões, devido tanto à falta de registros corretos, bem como, no caso de assassinatos, a constrangimentos familiares em admitir a opção sexual do ente falecido.

Em uma perspectiva mais ampla, a relação social entre indivíduos de opções sexuais distintas (que por certas vezes culmina em violência física) insere-se em um cenário maior, simbólico, no qual está incutida uma discriminação clara e disseminada em meios de comunicação e nas interações no dia a dia.

Linguagens da Violência

A violência praticada por grupos de intolerância é marcada por atrocidades, como manifestação de sua linguagem. Uma das explicações pode ser atribuída à tentativa de recuperar indivíduos, impondo de maneira contundente e “corretiva” comportamentos tidos como “adequados”, à luz dos valores destes grupos.

O sociólogo Antônio Celso Spagnol, do Núcleo de Estudos de Violência da Universidade de São Paulo afirma: “Casos de extrema violência são típicos. Às vezes vejo no jornal 'sujeito morreu com 20 facadas, teve o crânio esmagado, ninguém sabe quem foi'. É praticamente certo que seja homossexual, pela extrema violência que o sujeito causa no outro”.

É a violência que WIEVIORKA chama de “expressão desumanizada do ódio, destruição do Outro, tende à barbárie dos purificadores étnicos ou dos erradicadores” (pág. 37)

Os atos violentos ultrapassam, portanto, sua forma em si; extrapolam a cena, como forma de comunicar à sociedade o ódio e a destruição de um modus vivendi e de opções contrárias às estabelecidas pelo que se julga correto. É esperado pelos autores que a lição exacerbada possa servir de mensagem para reparar comportamentos inadequados.

A violência física, por sua vez, é consequência de um processo de dominação simbólico, construído socialmente. O dominado, grupo minoritário, assume a lógica da dominação de uma sociedade majoritariamente heterossexual. Decorre da situação uma violência simbólica, que, muitas vezes, não se expressa nem é vivida necessariamente como violência física, mas nem por isso não significa que não seja uma experiência dolorosa. Segundo Bourdieu, “transforma-se o arbitrário cultural em natural” (BOURDIEU, 2002).

As vítimas das ações mobilizam-se através de movimentos sociais ou por meio de organizações do governo que buscam promover as diferenças na sociedade. Nesse sentido, o Estado por meio de sua legitimidade, cria órgãos de apoio para repressão e articulação com meios de comunicação como estratégias de coibir a violência e conscientizar a população.

Violência, História e Sentido

Segundo TOURAINE (apud WIEVIORKA, pág. 29), a violência contemporânea decorre de um quadro de conflitos definido pelo autor como “crise da modernidade”. Neste cenário, identidades comunitárias entram em desacordo com a racionalização das ciências e do mercado, causando situações de embates entre culturas e o sistema.

Assim, a violência praticada por grupos contrários a homossexuais apresenta-se como uma proteção de uma identidade coletiva compartilhada por esses grupos. Os atores buscam a construção de uma realidade racionalizada, afirmando valores colocados em risco pelo processo de modernização, o que poderia ser a composição de um pós-modernismo, que tenta retomar e reafirmar tais valores (WIEVIORKA, 1997, pág. 35)

Em consonância com Wieviorka, DAHRENDORF (1987) aponta a crise da modernidade como o embate entre a valorização da autonomia e liberdade individual versus uma sociedade repressora, de indivíduos amedrontados ou repressivos. “Buscávamos Rousseau e encontramos Hobbes” (DAHRENDORF, páginas 13 e 14). O Estado cria mecanismos de controle e contenção com o objetivo de tentar estabelecer uma ordem severa em prol de um ambiente menos hostil.

Entretanto, os métodos de repressão construídos pelo Estado não obtêm grande êxito, na medida em que a relidade contemporânea apresenta grande complexidade. WIEVIORKA afirma que a fragmentação cultural contribui para que a fórmula weberiana – o monopólio estatal da violência – apresente-se cada vez menos capaz de lidar com a realidade (pág. 19). “A primeira questão de segurança hoje não são as ambições de poder, é a pane dos Estados” (Delmas, 1995 – apud WIEVIORKA, 1997).

Ademais, a rápida disseminação de informações por toda parte do globo via internet (a “sociedade informacional”, retomando o conceito de Manuel Castells) permite que sejam articuladas pressões políticas para que países assegurem compromissos perante a comunidade internacional para a garantia de liberdades individuais. Nesse aspecto, WIEVIORKA chama a atenção para os fluxos mudiais de decisões, mercados, pessoas, capitais e informações, que enfraquece o poder do Estado individualmente perante todo o cenário internacional (pág. 18), uma vez que seu posicionamento tem que ser alinhado a ele.

Graves Violações de Direitos Humanos

O Relatório de Direitos Humanos de 2010 da Rede Social de Justiça aponta avanços nos projetos governamentais de inserção dos direitos dos grupos LGBT. Áreas como a saúde, promoção de ações não-discriminatórias e a igualdade jurídica são temas abordados e priorizados na agenda do poder público.

No aspecto eleitoral, a mobilização dos grupos versa no sentido da conscientização política para eleger candidatos identificados com reivindicações dos grupos.

Especificamente no campo das ações contra a violência, foi elaborada e encaminhada uma pauta pelos grupos LGBT para a Conferência Nacional de Segurança Pública elencando aspectos que devem ser considerados ao se estabelecer a política de segurança. Destacam-se elementos como treinamento específico a policiais no tratamento aos indivíduos deste grupo e adequação de carceragens para recebê-los.

A parada do Orgulho LGBT de São Paulo, no ano de 2011, contou com a presença de 3 milhões de participantes, segundo números da organização. O evento contou com o dobro do número de policiais do ano de 2010, bem como um aparato capaz de registrar crimes contra intolerância sexual. Tais fatores podem explicar a queda do número de ocorrências do evento, que pode ser considerado um dos maiores do mundo.

Conclusão

As organizações que representam os grupos homossexuais têm logrado importantes vitórias ao obter espaços no cenário democrático. Seus resultados, por meio da pressão no poder governamental para a definição de políticas públicas, revertem-se em respeito em adequação de práticas (policiais, por exemplo) e diminuição de agressividade (aumento do policiamento e proteção), principalmente.

Neste cenário, é fato que o Estado por si não se apresenta capaz de gerir os conflitos existentes em um ambiente plural. As representações dos grupos perante os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário devem ser marcantes para promover mudanças. A comunicação com grupos internacionais também é fundamental para tornar ainda mais efetiva a questão afirmativa dos grupos.


Bibliografia:

1- Nucleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV-USP). São Paulo, 2007. Disponível em:

http://www.nevusp.org/portugues/index.php?option=com_content&task=view&id=189&Itemid=29
http://www.nevusp.org/portugues/index.php?option=com_content&task=view&id=162&Itemid=29
http://www.nevusp.org/portugues/index.php?option=com_content&task=view&id=215&Itemid=29

2- Relatório de Direitos Humanos – Rede Social de Justiça e Direitos Humanos. São Paulo, 2010. Disponível em:
http://www.social.org.br/Direitos%20humanos10.pdf
 (página 173 – artigo de Leonardo Dall Evedove).

3- Propostas da 1ª Conferência LGBT para a 1ª Conferência Nacional de Segurança Pública
http://www.inesc.org.br/biblioteca/textos/seguranca-publica/Propostas%20LGBT_para%20CONSEG.pdf

4- Jornal Extra. São Paulo, 2009. Reportagem disponível em: http://extra.globo.com/noticias/brasil/policia-de-sp-confirma-atentado-bomba-durante-parada-gay-prende-sete-de-grupo-neonazista-207419.html

5- Site APOGLBT. Reportagem disponível em: http://www.paradasp.org.br/noticias.php?id=256

6- WIEVIORKA, Michel. “O novo paradigma da Violência”. Tempo Social; Revista de Sociologia da USP. São Paulo, 9(1): 5-41, maio de 1997.

7- DAHRENDORF, Ralf. “A Lei e a Ordem”, Instituto Tancredo Neves – 1987.

8- BOURDIEU, Pierre. “A Dominação Masculina”, tradução Maria Helena Kuhner – 2ª Edição – Rio de Janeiro – Editora Bertrand Brasil, 2002.