quinta-feira, 5 de julho de 2012

Análise do documentário “Um Passaporte Húngaro”, de Sandra Kogut


INTRODUÇÃO

Este trabalho possui como objetivo realizar uma análise fílmica, por meio da exposição de algumas idéias sobre o documentário “Um Passaporte Húngaro”, de Sandra Kogut, à luz de referência teórica dos autores visitados durante o curso.
Como uma breve exposição do enredo do filme, a obra se baseia nas incursões de sua diretora como protagonista, Sandra Kogut, na burocracia estatal húngara, a fim de obter um passaporte da mesma nacionalidade de seus avôs. Trata-se de um documentário de alta carga autobiográfica, sem um roteiro propriamente dito, e, por isso, sem se furtar de casualidades, imprevistos e imponderáveis. A história se passa na filmagem de toda a busca pelo documento, registrando-se o que acontecesse.
Em grande medida, o filme busca fugir de conceitos preexistentes acerca da formação de uma identidade, migrações e dificuldades de se pertencer a uma cultura, embora seja possível notar resquícios desses elementos em algumas passagens. 
A burocracia apresentada no documentário, utilizando-se de leis húngaras supostamente válidas para a situação, revela-se frágil, relativa, atrapalhada e ineficiente no processo de concessão do documento.
O filme se inicia com um telefonema em francês, em viva-voz, realizado pela diretora ao consulado da Hungria, com a pergunta que guia toda a narrativa do filme: “Uma pessoa cujo avô é húngaro tem direito a um passaporte húngaro?”. Soma-se à dificuldade da pergunta realizada aos funcionários do consulado o fato de os pais de Sandra serem brasileiros. As cenas seguintes mostram sucessivas trocas de aparelhos telefônicos, com diferentes explicações à mesma pergunta, dando a entender que houve uma série de telefonemas, até que se pudesse obter uma resposta minimamente aceitável. A tomada seguinte mostra a filmagem de um trem partindo em viagem, indicando que Sandra partira para resolver a situação pessoalmente.
Sandra, então, encontra-se com sua avó, em um momento particular, sua refeição. Recorda-se de um desejo seu perante a família, sua vontade de obter um passaporte húngaro. É o momento que se descobre o real motivo de sua busca: a obtenção da cidadania européia. (diga-se de passagem, há uma gafe da diretora ao dizer que a Hungria “vai entrar para a Europa em 2003”. O país nunca esteve fora do continente. Pode-se supor que ela quisesse dizer “Comunidade Européia”.)
É quando surge o título do filme, envolto em uma música tranqüila. O que aparentemente remete a um ambiente familiar, uma busca pessoal.
“Um passaporte húngaro” possui dois eixos temporais. O primeiro deles é ligado ao presente da cineasta e se expressa nas negociações em torno do passaporte, cuja solicitação inicial é feita no consulado da Hungria em Paris. O outro é ligado à memória, individual e coletiva, e à história e emerge particularmente nas conversas da diretora com a avó, que mora no Rio de Janeiro, e com um casal de parentes, residentes em Budapeste – os três principais personagens da narrativa. E também nos diálogos de Kogut com funcionários dos arquivos e registros oficiais no Brasil e na Hungria.
A história contada no filme permite intersecções entre a trajetória particular da diretora com os acontecimentos na Europa na segunda metade do século XX. A busca do passaporte traz consigo certo resgate de identificação nacional, perdido à época da Segunda Guerra Mundial, por conta de uma política anti-semita.

FILME E IDEOLOGIA – A CONTRIBUIÇÃO DE PIERRE SORLIN

            “Um filme começa a nascer quando alguém propõe um assunto. Os relatos não são um filme, mas servem de pretexto” (SORLIN, 1985, p. 174). Assim Pierre Sorlin descreve a concepção de um filme. No caso da obra analisada, o mote transita entre o pertencimento a uma nação e a burocracia existente para se fazer valer legalmente tal fato. A composição das passagens constrói a contraposição existente entre se fazer um cidadão de um país e documentos e procedimentos necessários.
Segundo Sorlin, “o assunto dos filmes não é nada além do desenvolvimento de um dado inicial que não controlam os filmes; em um sentido, o assunto está “fora do campo” e o filme não trata mais que uma de suas implicações” (SORLIN, 1985, p. 176). É exatamente o que se passa com Sandra Kogut: as implicações trazidas pela proposta da autora são impensáveis – em um determinado momento, após entregar todos os documentos necessários para a obtenção do passaporte, uma conhecida húngara se mostrou surpresa ao saber que seria necessário aguardar mais um ano para recebê-lo. Trata-se de uma implicação decorrente da situação proposta pelo filme.
Afirma Sorlin: “Voltemos à distância que separa a história do relato, marcando melhor seu alcance. A anedota se forma no interior de um sistema narrativo cujos traços fundamentais já temos notado: as variações a partir desse esquema de base são numerosas: ao serem estudadas as articulações principais do relato se pode ver se existem caracteres próprios do conjunto que se estuda. A pergunta que tem que se feita é: “quais são os assuntos que voltam mais freqüentemente?”. (SORLIN, 1985, p.176). Encontra-se, no documentário, os conceitos de Sorlin ao serem confrontadas três proposições recorrentemente apresentadas: o relacionamento de Sandra com sua família, a busca do passaporte e a relação com uma burocracia desorganizada e desinformada.
Podem-se considerar temas do filme, à luz do conceito proposto por SORLIN (1985), a burocracia, a cidadania e a nacionalidade. O autor conceitua como “temas” as idéias dos objetos dos problemas evocados nos filmes ou em partes dos filmes (SORLIN, 1985, p. 177).
A história apresentada por Sandra Kogut mostra, sob o aspecto histórico, as causas da migração de sua família para o Brasil. A percepção sistemática dos temas gerais e particulares, segundo Pierre Sorlin, pode nos dar uma visão das zonas de silêncio e de consenso das questões permitidas ou proibidas, em uma palavra, dos limites impostos pelos produtores e pelo sistema político. O estudo das formas narrativas pretende estabelecer a relação com as outras formas de relatos (novelescos, históricos, políticos, jornalísticos) e precisar outros mecanismos de imposição, os encadeamentos, os silêncios particulares de uma época (p. 177). A personagem autora vive, no presente, as conseqüências de um drama político engendrado há muitas décadas.
Outra idéia forjada por Sorlin que está muito presente no documentário é o conceito de “visível”. Segundo o autor, desenvolvem-se perspectivas sobre o meio exterior que não reproduzem o mundo sensível “tal como é”, mas como vêem os realizadores. Isto é o que se chama de “visível”. (p. 178). Os recortes dos planos seqüência colocados na montagem do documentário transmitem a idéia de dificuldade burocrática, idealizada pela autora. Ainda segundo Sorlin:
“(...) os idealizadores impõem os textos com a mesma razão que a interpretação dos atores ou da ficção; o que fotografam não é aquilo que vêem, mas o que querem mostrar. Em casos semelhantes é impossível falar de visível no sentido em que se toma a palavra, o fundo é então um dos materiais da construção, inseparável dos demais. A primeira objeção nos leva a precisar que a noção de visível é entendida exclusivamente para os filmes que tratam de integrar o universo observável, e, mais precisamente, fragmentos do universo observável é dizer os filmes que possuem analogia com o mundo exterior.” (SORLIN, 1985, p. 178)
           
A composição dos planos seqüência transmite os temas propostos pela diretora.
“A história não é mais que apenas um aspecto do filme. É necessário se interessar pela construção e pela ação colocada no material fílmico.(...) A imagem não possui fidelidade; a percepção é um ato social, fixa-se e se organiza em função do que é útil e lícito ver no meio no qual nos situamos e no que queremos nos situar. (...)O filme cria um mundo projetado, no sentido de que um volume projetado sobre uma superfície plana se converte em uma forma que não é totalmente alheia ao volume e que sem embargo difere dela de maneira essencial.” (SORLIN, 1985, p. 169 - 170)

Sobre a relação com o espectador, a obra conta com uma certa idéia pré-formatada de burocracia de quem assiste. Aposta-se, do lado do público, que a idéia de obtenção de um documento da monta de um passaporte conte com um processo penoso e caro. Desta forma, o espectador é convencido sem maiores percalços de todas as etapas pelas quais Sandra Kogut passa em sua aventura. Segundo Sorlin:
“O filme coloca em cena uma relação que se estabelece constantemente com o espectador: de maneira clara ou obscura, trata-se de uma proposição que o espectador aceita ou rejeita. Estudar o que é colocado em cena ou, mais genericamente, o que se chama de construção, equivale a tratar de discernir qual estratégia social, que modelos de classificação e reclassificação atuam nos filmes.” (SORLIN, 1985, p. 170).

Além disso, a quantidade de planos diferentes em seqüência constroem uma percepção no espectador. Exemplo claro é a cena de abertura do filme, que conta com diversos aparelhos telefônicos respondendo a uma mesma pergunta com diferentes respostas. “A união de sinais oferece uma maior informação” (SORLIN, 1985, p. 183)
            Há um aspecto político relevante, que pode ser destacado do filme: a vida dos judeus à época da Segunda Guerra Mundial. Os aspectos abordados no filme referem-se à necessidade de fuga do continente europeu e da necessidade de mudança de seus nomes originais para que passassem incólumes à perseguição. De acordo com Sorlin, “a ideologia é o conjunto das possibilidades de simbolização concebíveis em um momento dado. Um filme aparece como um aspecto, um fragmento da ideologia em geral, mas também como um ato através do qual o grupo de indivíduos, ao escolherem e reorganizarem materiais visuais e sonoros, ao fazê-los circular entre o público, contribui para a interferência de relações simbólicas sobre as relações concretas.” (SORLIN, 1985, p. 171). Ao apresentar o personagem Gyuri Fabri, o filme mostra que, por algumas vezes, ele se viu obrigado a mudar de nome. De Loewinger para Friedmann (almeão) e, então, após a guerra, para Fábri (italiano) e, na Hungria, para Lajta.
Não se pode depreender unicamente do filme um tempo cronológico exato para o acontecimento de toda a narrativa, embora em um determinado momento, o funcionário da embaixada questione e Sandra afirme que já haviam se passado oito meses de espera dos documentos. Pesquisas paralelas em sítios na internet mostram que todo o trabalho teria levado dois anos[1]. O tempo fílmico, entretanto, de acordo com Pierre Sorlin,
“não é um tempo vivido, puramente subjetivo e abandonado à fantasia do espectador, regulado por mecanismos de associação precisos, cujo detalhe, geralmente, o público descuida, mas sim que são sensíveis por pouco que se preste atenção; contribui para colocar uma perspectiva, um em relação aos outros, os elementos que constituem o filme. (...) O tempo não é uma peripécia, um detalhe, um recurso da ficção; presente na imagem, traduzido pela construção, confunde-se com o conjunto do filme, o que faz que se esqueça facilmente. Situa cada realização em uma perspectiva geral que é fundamentalmente ideológica, posto que implica uma relação entre a história narrada pelo filme e a inexistência da história.” (SORLIN, 1985, p. 190-191 e 194).
O documentário fornece uma idéia adicional do tempo decorrido também quando informa que, depois de entregue toda a documentação, foi necessário aguardar um ano para a obtenção de um documento provisório.
A construção da realidade fílmica é um processo complexo e deve abranger perspectivas definidas. Para Pierre Sorlin, “a construção não é um simples alinhamento de fotogramas, mas um agenciamento de formas fílmicas através da qual se encontram manifestados o tempo, o espaço e o sistema social, ou relações entre grupos e indivíduos.” (SORLIN, 1985, p. 192). O tempo, espaço e sistema social mostram-se claros em “Um passaporte Húngaro”. Embora a busca da autora não demonstre uma marcação definida com relação ao tempo gasto, por outro lado, a noção temporal se faz mais presente e relevante quando se relaciona as dificuldades do presente como conseqüência de problemáticas de meados do século XX. O sistema social e as relações entre grupos e indivíduos, àquela época, mostravam-se em reconfiguração profunda, decorrente da Segunda Grande Guerra.
Outro conceito cunhado por Pierre Sorlin diz respeito a “pontos de fixação”. Trata-se de
“um problema ou fenômeno que, sem estar diretamente implicado com a visão, aparece regularmente em séries fílmicas homogêneas e se caracteriza por alusões, por repetições, por uma insistência particular da imagem ou de um efeito de construção. (...) Em torno de um ponto de fixação temos descoberto um vasto sistema relacional. Quando se propõe a síntese, chega-se a uma série de separações que parecem muito simples. (...) Uma mesma série fílmica traz numerosos pontos de fixação, que não tem a mesma intensidade e se aderem a “zonas sensíveis” muito distintas.” (SORLIN, 1985, p. 196, 200, 201).

O ponto de fixação notório, no caso em análise, é o sistema burocrático, aparentemente idêntico, presente no Brasil, França e Hungria. Constrói-se uma relação padrão entre o Estado e o indivíduo, independentemente de sua nacionalidade ou localização.

            O sistema criado no filme para estabelecer a relação entre uma pessoa e sua nacionalidade transmite burocracias e processos desencontrados. Esse sistema relacional é conceituado por Pierre Sorlin “pondo em relação indivíduos e grupos, cada filme constitui, no interior do mundo fictício da tela, hierarquias, valores, redes de intercâmbios e influências.”. (SORLIN, 1985, p. 202). O conceito pode ser encontrado do documentário tendo em vista o relacionamento da personagem autora com sua família e com os burocratas. Em nenhum momento ela tenta buscar eventuais privilégios, que poderiam ser provenientes de contatos no alto escalão de governos, por exemplo. Assim, ela se coloca como uma pessoa comum, em busca de um passaporte, conseguindo, assim, uma identificação com o espectador.
            Os conflitos gerados pela situação criam inevitavelmente “rótulos” de participação aos personagens. Com relação a este ponto de vista, SORLIN esclarece:
“Que face tomam as funções essenciais do relato, heróis, aliados, adversários e em que contexto, segundo que regras são confrontados? A organização do relato nunca é a simples colocação em ação de algumas das vistas abertas pela lógica narrativa: revela, através do desenvolvimento de uma razão, um juízo sobre os feitos passados; é plenamente ideológica na medida em que, partindo de uma situação, reconstrói seus dados fundamentais e depois interpreta seu desenvolvimento. (SORLIN, 1985, p. 203)

Categorizando-se as características do filme à luz do modelo proposto por Pierre Sorlin, conclui-se que se trata de um desafio familiar e político-social (na medida em que a personagem persegue suas raízes para, assim, obter legalmente um documento, um atestado de nacionalidade). Os grupos implicados no desafio são: uma autora-protagonista, descendente de húngaros (com a função de buscar seus objetivos e provocar o conflito como parte fundamental da história); a família da autora-protagonista (com uma função coadjuvante de auxiliar na busca) e a burocracia de um país (com uma função antagônica e até mesmo caricaturada). As transferências e alterações não são ocultas se dão nas negociações de Sandra com os funcionários dos governos; os conflitos são subentendidos nas reações de interrogação dos empregados. A relação existente entre Sandra e sua família, seus aliados em busca de seus objetivos,  é de intimidade e cumplicidade. Há, por parte desses auxiliares, eventuais intervenções, como o telefonema que questionou a validade do documento emitido. Os enfrentamentos são evitados. Ainda que as respostas obtidas dos consulados sejam absurdas, a autora prefere deixar o julgamento ao espectador.
Ainda segundo Sorlin, “dado que põe frente a frente dois personagens, todo relato define ao menos parcialmente uma forma de intercambio. Trata-se de uma construção arbitrária que, de maneira mais ou menos elaborada, trabalha sobre três términos fundamentais: conivência, oposição e ignorância recíproca”.  (SORLIN, 1985,p. 205). No caso da relação com os burocratas, Sandra prefere manter-se aparentemente ignorante (deixando o julgamento nas mãos do espectador), enquanto eles tentam sustentar freqüentemente, uma postura de oposição ao pleito.

Em suma, o filme possui extrema aderência aos conceitos forjados por Pierre Sorlin. Concluindo como objetivo geral de seu texto, o autor define que
“os filmes são como expressões ideológicas, ou seja, manifestações parciais do sistema de simbolização que é a ideologia de certa época. Negamos a limitar a ideologia como uma soma de características ou de definições. (...) Trata-se de revelar a ideologia na seleção de pontos de vista fotografáveis e em sua reutilização, a expressão ideologia não é a escada com a qual o burocrata fica no alto e os desempregados abaixo, nem a olhada sobre os grandes conjuntos, tampouco a contraposição de campos, nem a panorâmica: é uma colocação na relação entre dados elementares e, mais genericamente, a combinação das unidades de diversos graus sobre a totalidade do filme, o que quer dizer que a análise ideológica de um filme não se separa de um grande trabalho sobre sua construção” (SORLIN, 1985, p. 190)

SOMATÓRIA DE PERCEPÇÕES

À luz da teoria de Merleau-Ponty, sobre a somatória de percepções, o autor afirma que os filmes devem ser considerados como objetos a se perceber. Para Merleau-Ponty o “sentido de uma imagem depende, então, daquelas que a precedem no correr do filme e a sucessão delas cria uma nova realidade, não equivalentes à simples adição dos elementos empregados” (MERLEAU-PONTY, 1983, p. 111).
O filme analisado nos dá alguns exemplos dessa teoria. Nota-se, do passar da personagem por diversos funcionários públicos, a representação e da exteriorização da burocracia existente. O objetivo é causar no espectador a percepção de dificuldade, desorganização e falta de informações adequadas. As seqüências legitimam o discurso construído pela autora.
Há também uma linha cronológica clara de acontecimento dos fatos, embora haja eventuais incursões trazidas do passado em narrativas posteriores. Há uma ordem seqüencial temporal na busca de informações no consulado, conversas com a avó, ida à Hungria, conversas com familiares da Hungria e conversas com funcionários do consultado húngaro e da imigração brasileira.
Os eixos temporais, apesar de distintos, por algumas vezes, sobrepõe-se. Conversas tidas com a avó no Brasil são deslocadas para momentos em que Sandra está na Hungria.

MONTAGEM

Na mesma chave analítica utilizada por Merleau-Ponty, os recursos de decupagem do filme podem ser analisados com base nos conceitos de André Bazin, presentes em “A evolução da linguagem cinematográfica”.
De acordo com o texto, pode-se considerar Sandra Kogut uma diretora que trabalha sobre imagens.
“Por imagem, entendo de modo bem geral tudo aquilo que a representação na tela pode acrescentar à coisa representada. Tal contribuição é complexa, mas podemos reduzi-la essencialmente a dois grupos de fatos: a plástica da imagem e os recursos da montagem. Na plástica, é preciso compreender o estilo do cenário e da maquiagem, de certo modo até mesmo da interpretação, aos quais se acrescentam a iluminação e por fim, o enquadramento que fecha a composição. Quanto à montagem [...] ela constituía o nascimento do filme como arte: o que o distingue realmente da simples fotografia animada. Na realidade, enfim, uma linguagem”. (BAZIN, 1985, p. 67)

            Com esse trecho de Bazin, pode-se analisar “Um passaporte Húngaro” de outra perspectiva. De acordo com a plástica, percebe-se que os cenários do filme são bem definidos, variando entre a casa da avó de Sandra, a casa de seus parentes na Hungria, os consulados húngaros (na França e no Brasil), o departamento de imigrações na Hungria e no Brasil.
No filme não há um tipo de maquiagem específica, muito por conta da estratégia de filmagem. O mesmo ocorre para o tipo de iluminação, que é natural, no decorrer do filme. Já os enquadramentos se caracterizam em algumas formas distintas: a figura da diretora-atriz raramente aparece. Há planos fechados em suas conversas com a avó, bem como nos depoimentos dos funcionários da imigração, fazendo com a atenção fique presa ao discurso da personagem; há planos relativamente abertos nas conversas com seus parentes na Hungria. O momento da conversa durante a refeição da avó mostra a intimidade entre elas. Com relação aos familiares distantes, os diálogos se iniciam com certo tom de formalidade, que vão se tornando mais abertos com o passar do tempo. A impressão obtida é de uma relação ainda carente de intimidade.
            Com relação à montagem, há momentos controversos entre as explicações dadas por funcionários da embaixada húngara com relação ao rol de documentos necessários para obter o passaporte. Com esta seqüência, a diretora obtém a exposição de maneira direta da falta de regras com relação a este procedimento.

TIPOS DE DOCUMENTÁRIOS

            NICHOLS (2001) propõe alguns modelos de classificação para os documentários. Tais categorizações, entretanto não dão conta de abranger todos os casos. Dos tipos criados pelo autor, há incontáveis exemplos de documentários nos quais há identificação com dois tipos, bem como há casos de não adequação a nenhuma das propostas.
            Considerando-se estas ressalvas, a categorização que mais abrange o documentário “Um Passaporte Húngaro”, dentre os apresentados por Nichols, é o modo performático. Segundo o autor:
“Como o modo poético, o modo performático suscita questões sobre o que é o conhecimento (...). O documentário performático endossa o conhecimento como algo bem descrito, concreto e material, baseado nas especificidades da experiência pessoal, na tradição da poesia, da literatura e da retórica. Ele demonstra como o conhecimento material propicia o acesso a uma compreensão dos processos mais gerais em funcionamento na sociedade. (...) O documentário performático sublinha a complexidade de nosso conhecimento do mundo ao enfatizar suas dimensões subjetivas e afetivas.” (NICHOLS, 2001, p. 169)

            Tomando-se as características do filme como instrumento de análise, tenta-se afastar da realidade, de maneira a organizar uma estrutura teórica de forma racional. Os demais modelos sugeridos por Bill Nichols podem, das seguintes maneiras, abordar “Um passaporte Húngaro”:
            Características do modo observacional/observativo: imagens que mostram a interação dos atores sociais, que faz com que os personagens sejam surpreendidos. Essa característica faz com que os espectadores tenham uma sensação de desconforto, pois pode se deparar com cenas inusitadas. É o que ocorre com freqüência no documentário nos inúmeros tipos de explicação fornecidos pelos funcionários para obtenção do visto.
            Características do modo reflexivo: Tentativa do cineasta de travar um diálogo com os espectadores, não só pelo mundo histórico, no qual o filme se passa, mas também sobre as questões e os problemas de representação. Para se pensar neste ponto, é preciso se indagar qual foi a idéia do autor ao construir a personagem da maneira que ele construiu; qual foi o cenário em que o filme é passado.
“Esses filmes tentam aumentar nossa consciência dos problemas de representação do outro, assim como tentam nos convencer da autenticidade ou da veracidade da própria representação.”. (Nichols, 2001)

UTILIZANDO UMA LEITURA DOCUMENTARISANTE

            Ao analisar o filme sob as perspectivas de Roger Odin, busca-se descrever uma leitura documentarisante. O discurso deve ser construído tomando-se Sandra Kogut como a Enunciadora real, pois é a responsável por todo o discurso do filme. Ela própria é tomada como um Enunciador pressuposto real (realidade pressuposta do Enunciador).
            Para realizar uma leitura documentarisante de fato, entretanto, faz-se necessária atenção a quatro modos de produção de leituras, duas internas ao filme e duas externas:
1) Produção de leituras internas:
            Produção de leitura pelos créditos: há legendas que dão créditos à diretora Sandra Kogut no início do filme, mas não há clareza prévia quanto à proposta documental; há nome de atores, bem como créditos no final do filme.
            Sistema estilístico do filme: possui certas característica típicas de documentário, apresenta cenas de entrevistas, mas não há legendas com o nome dos personagens. Estas conversas, atreladas à outras imagens constroem a história  e os personagens do filme.
2) Produção de leituras externas:
            Produção individual: Odin afirma que todos os filmes são passíveis de uma leitura documentarisante. Mesmo filmes de ficção não possuem o poder de bloquear totalmente esse tipo de leitura. É possível tomar como Enunciador real a personagem principal, Sandra Kogut que, inclusive, em algumas passagens do filme participa dos diálogos nas conversas apresentadas.
Modo externo de produção de leitura: a análise é baseada em conceitos sociológicos e teorias sociológicas sobre o cinema. Dessa forma, produz-se uma leitura documentarisante institucional. “A existência de filmes demandando serem lidos segundo um modo de leitura determinada, nos conduz naturalmente a tentar precisar como se efetua, nesses próprios filmes, a exibição documentarisante.”. (Odin, 1984)
Podemos dizer, ainda segundo Odin, que “Um passaporte Húngaro” é um filme que pertence ao conjunto documentário, pois em sua estrutura e em sua instrução podemos por em prática as idéias descritas acima sobre a leitura documentarisante.


Bibliografia:

·         BAZIN, André. L’Évolution du langage Cinématographique, p. 56-80. In ________. Qu’est-ce que le cinema? Paris, Les Éditions du Cerf, 1985.
·         MERLEAU-PONTY, Maurice. O cinema e a nova psicologia. In: Xavier, Ismail (org.) A experiência do cinema. Graal, 1983.
·         NICHOLS, Bill. What typoes of documentary are there? In: ________. Introduction to documentary. Boomington, Indiana University Press, 2001.
·         ODIN, Roger. Film documentaire, lecture documentarisante. In: ODIN, R. e LYANT. J. C. (ed.): Cinémas et réalites. Saint-Etienne: Universidade de Saint-Etienne, 1984.
·         Revista “Galáxia, Revista Transdisciplinar de Comunicação, Semiótica e Cultura”, v.7. São Paulo: Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica – PUC, p.75 - 84, 2004. Disponível em http://www.pos.eco.ufrj.br/docentes/publicacoes/clins_2.pdf
·         SORLIN, Pierre. Sociologie du Cinéma. Paris, Aubier, 1982. Terceira parte, II Filme e Ideologia, estabelecimento de uma amostra, a construção tempo-espaço, pontos de fixação, sistemas relacionais. P. 199-205, 218-242.