terça-feira, 2 de outubro de 2012

Ensaio Comparativo de Etnografias - Afastamentos e Aproximações


O presente trabalho tem por objetivo realizar uma comparação entre três etnografias, seus aspectos de aproximação e afastamento quanto às características mais definidoras do catolicismo, sob o ponto de vista de cada um dos autores.
São elas:
MONTEIRO, Duglas Teixeira. (1974) - Os errantes do novo século: estudo sobre o surto milenarista do Contestado. São Paulo, Duas Cidades.
Filme O PAGADOR DE PROMESSAS (1960), de Dias Gomes, direção Flávio Rangel, produção TBC.
MOURA, Margarida Maria – devoções marianas na roça e na vila – Cadernos CERU Série 2, n. 8, 1997, pgs. 121 a 134.

Inicialmente, acerca do aspecto cronológico das etnografias, pode-se dizer que possuem certo afastamento. A obra de Duglas Teixeira Monteiro possui um argumento interpretativo que segue uma estrutura que organiza o evento numa sequencia lógica: a ordem pretérita, em que a unidade ideológica era dada pelo catolicismo rústico; o desencantamento, entendido como secularização que não chega a se institucionalizar na sociedade local, e o reencantamento, onde se reconstituem os valores ameaçados pela crise. Dias Gomes, como não poderia deixar de ser, segue um enredo fílmico, isto é, constrói a trama até o clímax, seguido por cenas que conduzem a um fechar das cortinas extremamente rico de interpretações e elementos simbólicos. A professora Margarida Moura, ao descrever as devoções marianas, por sua vez, salienta a formação histórica do catolicismo mariano e suas influências em Minas Gerais desde o século XVII até seus frutos atuais.
À luz da ação religiosa vis-à-vis os atores sociais envolvidos, os relatos trazem interessantes aproximações. No caso do Contestado, o autor procura compreender o significado que as ações religiosas e os rituais tinham para os atores sociais envolvidos com o movimento. Há uma condução da luta para além dos laços locais entre fazendeiros e rebeldes, Teixeira Monteiro mostra que o esquema das lealdades hierárquicas transcende os regionalismos e se manifesta também nas relações dos coronéis com o governo estadual e deste com o governo central. Em “O Pagador de Promessas”, o filme deflagra claras relações entre a religião e atores sociais. Há a problematização da complexidade de questões sócio-culturais. A intolerância, o autoritarismo e a insensibilidade da Igreja Católica frente às práticas populares. A arbitrariedade de uma autoridade que representa o Estado – a polícia – em considerar um caso de diferença cultural em um caso policial. A voracidade da imprensa em transformar os fatos, apenas visando a repercussão nas manchetes do jornal. Um camponês em desajuste com o meio urbano, não compreendendo e não sendo compreendido na grande cidade. Finalmente, nas devoções marianas, vislumbra-se durante o período colonial um vínculo sagrado e protetor dos escravos com Nossa Senhora, por certo favorável ao estabelecimento de “um elo poderoso, permanente e uníssono entre os vários segmentos da sociedade”. 
“A mãe de Jesus Cristo constitui-se em um contraponto perfeito às dominações políticas masculinas que predominam na sociedade rural, conduzidas, via de regra, por homens ricos e fazendeiros. Este contraponto, dotado de um sentido relacional maternal/filial caracteriza a adesão das populações rurais de diversas condições à sua devoção. Dotada também de um sentido maternal x filial, constitui-se também na crença principal da classe fazendeira. Maria é esperança de liberdade para os oprimidos, é confiança no exercício da ordem pelos dominadores”. (MOURA, p. 121-122)

Assim como a cabeça da imagem da Santa não se une ao corpo, a autora constrói uma analogia da sociedade, na medida em que há um equilíbrio instabilíssimo que se complica através de segmentações sociais, culturais e raciais cada vez mais plurais. 
Sob o aspecto da apresentação de uma contraposição entre o catolicismo rural (rústico, nas palavras de Maria Isaura Pereira de Queiroz) e outro urbano, observa-se aproximações entre as etnografias. Teixeira Monteiro assinala que, no Contestado, o Catolicismo alcançou extrema autonomia diante da Igreja e do Estado, como no período de transição entre a monarquia brasileira e a Primeira República (1822/1889), vindo a eclodir revoltas messiânicas e milenaristas, como o do Contestado ocorrido entre 1912 e 1916, na região disputada pelos estados do Paraná e Santa Catarina, também contido pelas forças armadas republicanas. O Contestado se caracterizou como catolicismo popular e em sua modalidade rústica, que tem suas raízes mais importantes plantados no solo da Grande Tradição judaico-cristã, onde sobressaem, às vezes, contraditoriamente, a esperança messiânica do Reino de Deus numa terra renovada. Há um esforço no sentido de entender esse “mundo simbólico” dos sertanejos e, na medida do possível, mapear suas origens. Dias Gomes, por sua vez, retrata o conflito da religião “oficial”, em consonância com a hierarquia católica, sendo defendida pelo sistema colonial numa “tentativa de purificação da religião das manifestações de ignorância” “o catolicismo popular era reprovado como expressão de ignorância, de superstição e de fanatismo”. Esse era um dos argumentos e motivos da implantação de uma “religião purificada”, livre de “superstições” e que estivesse sob a égide do poder clerical. As devoções marianas, por seu turno, fazem crer, em um primeiro olhar que a Virgem Maria é de todos os seus devotos. Entretanto, um painel das devoções marianas nos séculos XVIII e XIX, analisa as diferentes devoções praticadas entre as elites e as classes pobres. A devoção ao Rosário foi aquela que mais se disseminou entre os escravos, posteriormente por libertos e ao final acolhida pelos pobres, tanto no âmbito rural quanto no urbano. Junto às classes mais abastadas, em especial a dos grandes fazendeiros, as preferências devocionais se concentram nas figuras de Nossa Senhora do Carmo e Nossa Senhora da Conceição. Segundo Margarida Maria Moura, através dos rituais dos altares e naves marianas durante as festas do Rosário e de outros santos, nos quais reis e rainhas mantinham-se altivamente postados ao lado do sacerdote oficiante, podemos detectar “um catolicismo rústico e popular, ex-escravo, que ocupa o espaço do Catolicismo Oficial com sua anuência e tolerância, mesmo que aquele interfira frequentemente nas soluções ainda mais populares, que os participantes da festa se esforçam em ampliar”.
Outro aspecto que pode ser identificado como fonte de análise das obras é a relação de gênero na adoração, que retrata personagem feminina, na qual há certo afastamento na obra de Teixeira Monteiro. No caso do Contestado, as relações são, sem dúvidas, predominantemente patriarcais, masculinas. Exemplo claro é o compadrio, ligado a uma figura masculina. Entretanto, embora não haja menção a uma figura feminina propriamente dita, as Marias de José Maria e João Maria remetem à figura da mãe de Jesus, permitindo que o lado feminino registre sua marca na história. No filme de Dias Gomes, a santa para quem fora feita a promessa foi Yansã (no candomblé) ou Santa Bárbara (na igreja Católica). O ente venerado é uma figura feminina. A questão de gênero sobressai na etnografia da professora Margarida, na qual a sociedade rural mineira é uma sociedade mariana, dado ser a Virgem Maria a personagem sagrada feminina mais invocada.
Avaliando-se o sincretismo religioso presente nas obras estudadas, observa-se relevantes aproximações. No Contestado, destacam-se como elementos formadores da religiosidade: católicos (virgindade), ameríndios (encantamentos), gesta carolíngia, africanos (espíritos de florestas, entidades de matas, patuás). Em “O Pagador de Promessas”, o início do filme é revelador: num terreiro de candomblé, há várias pessoas, incorporando Orixás, dançando e cantando, entre eles podemos reconhecer Oxum, Yemanjá, Omolú e Yansã. Num canto, no próprio terreiro, Zé do Burro está ajoelhado, olhando devotamente para a imagem de Santa Bárbara, ao terminar sua reza, faz o sinal da cruz e levanta-se. Zé do Burro é católico, mas não encontra problema algum em freqüentar o candomblé. Ao longo do filme, observa-se que foi no terreiro de Yansã, que no sincretismo religioso é Santa Bárbara, que Zé do Burro fez sua promessa. Por orientação da Mãe de Santo do Terreiro de Yansã, a promessa deveria ser bem grande, afinal seu fiel companheiro também era bem importante. Yansã – Bárbara foi escolhida por Zé do Burro por ser a orixá – santa das chuvas e das tempestades. Atendido por Yansã – Bárbara, a Zé do Burro só resta percorrer as sete léguas que separam seu sítio da Igreja de Santa Bárbara, carregando a cruz. Já na cidade, próximo à igreja, pelas ruas do Pelourinho, a reação da população boêmia é outra: descaso e deboche, ninguém entende seu ato, um dos presentes, de forma pejorativa diz que Zé do Burro “é um palhaço”. O sincretismo pode ser identificado nas devoções marianas no momento em que Nossa Senhora do Rosário dança para os tambores africanos. A dança, uma demonstração de culto originariamente africana, acomete uma entidade cultuada pelo catolicismo europeu. Há a presença de caboclos, marujos e catopés e Santa Ephigênia, divindade preta dos escravos.
Sob o aspecto das crenças, nota-se entre as etnografias um certo afastamento, especificamente das devoções marianas. No caso do Contestado, ao messianismo deve-se acrescentar o milenarismo. Há uma percepção da guerra do Contestado como “jogo”, por parte de seus participantes, que reside grande parte da originalidade da análise de Teixeira Monteiro. Sendo o Contestado episódio inequivocamente colorido por expectativas messiânicas (ao contrário de Canudos, onde é assunto controverso), a atividade econômica dos sertanejos não foi contínua nem normal, notabilizando-se, ao contrário, pelo saque e desperdício. Em perspectiva centrada nos valores litorâneos, republicanos e racionais isto constitui mais uma prova, portanto, do erro essencial em que viviam os rebeldes do Contestado. No filme de Dias Gomes, por sua vez, houve uma identificação por parte do público e da Igreja que Zé do Burro teria a intenção de se passar por Jesus Cristo. Ele refuta esta comparação. No final do filme, entretanto, o andarilho adentra a igreja simbolicamente crucificado, tal qual o messias. Pode-se atribuir características messiânicas a este ato, sob o ponto de vista do público (soteropolitanos, componentes da história, e expectadores do filme). No caso das devoções marianas, não se observa traços de messianismo, milenarismo ou sebastianismo evidentes.
Nota-se que, sob determinados aspectos, do ponto de vista religioso, as obras apresentam aproximações e distanciamentos.