terça-feira, 4 de janeiro de 2011

SAID, Edward – Orientalismo – O Oriente como invenção do Ocidente - Capítulo 1 – O Âmbito do Orientalismo

Apenas a transcrição de alguns trechos interessantes do capítulo

Qualquer descrição do orientalismo deveria considerar não apenas o orientalista profissional e sua obra como também a própria noção de um campo de estudos baseado em uma unidade geográfica, cultural, lingüística e étnica chamada de Oriente.
Até meados do séc. 18, os orientalistas eram estudiosos bíblicos, estudantes de idiomas, especialistas islâmicos ou sinólogos. Por volta de meados do séc. 19, o orientalismo era um tesouro de erudição tão vasto quanto se podia imaginar.
De modo totalmente exterior às descobertas científicas sobre as coisas orientais feitas por profissionais instruídos na Europa durante aquele período, houve a virtual epidemia de coisas orientais que afetou todos os grandes poetas, ensaístas e filósofos da época.
O oriente que se estudava era, de maneira geral, um universo textual. O impacto do oriente chegava através de livros e manuscritos e não como no caso da marca deixada pela Grécia sobre a renascença, mediante artefatos miméticos como escultura ou cerâmica. Quando um orientalista culto viaja para o país de sua especialização ia sempre acompanhado de máximas inabaláveis sobre a “civilização” que estudara, eram raros os casos de orientalistas que tinham outro interesse eu não o de provar essas poeirentas verdades aplicando-as sem grande êxito a nativos que não os entendiam e, portanto, eram degenerados.
Há obras clássicas que contêm uma espécie de mitologia flutuante do oriente, um oriente que deriva não só de atitudes e preconceitos populares contemporâneos, mas também daquilo que Vico chamou de presunção das nações e dos eruditos.
Apesar da distração de um grande número de vagos desejos, impulsos e imagens, a mente parece formular persistentemente o que CLS chamou de uma ciência do concreto. Uma tribo primitiva, por exemplo, atribui lugar, função e significado definidos para cada espécie folhosa do seu ambiente imediato. Muitas dessas ervas e flores não tem nenhuma aplicação prática, mas o que CLS quer dizer é que a mente precisa de ordem, e a ordem é alcançada pela discriminação e registro de tudo, pela colocação de tudo o que a consciência em um lugar seguro e fácil de achar, dando assim às coisas algum papel a cumprir na economia de objetos e identidades que formam um ambiente. Há sempre uma medida de puramente arbitrário na maneira como são vistas as distinções entre as coisas.
Todo um arquivo fora construído pelos viajantes e conquistadores do oriente. Disso se origina um número restrito de típicas encapsulações: a jornada, a história, a fábula, o estereótipo, o confronto polêmico. São essas as lentes através das quais o oriente é experimentado e elas moldam a linguagem, a percepção e a forma do encontro entre o leste e o oeste. Algo claramente estrangeiro e distante, no entanto, por uma ou outra razão, torna-se mais e não menos familiar. Deixa-se de se considerar as coisas como completamente insólitas ou completamente conhecidas, emerge uma categoria média, que nos permite ver novas coisas, como versões de algo conhecido anteriormente.
Um orientalista não é mais que um especialista particular em um conhecimento pelo qual a Europa em geral é responsável, do mesmo modo que uma platéia é histórica e culturalmente responsável por (e suscetível a) dramas tecnicamente montados pelo dramaturgo.
A qualidade didática da representação orientalista não pode ser separada do resto da peça. Há pesquisas e estudos sistemáticos que os autores impõem uma ordem disciplinar sobre o material. Para se chegar ao oriente, é preciso se passar pelo orientalista. Não só se acomoda o oriente às exigências morais da cristandade ocidental como também é circunscrito por uma série de atitudes e julgamentos que referem a mente ocidental para verificação e correção, não às fontes orientais. O orientalista exerce assim uma força tripla: sobre o oriente, sobre o orientalista e sobre o consumidor ocidental de orientalismo. É importante lembrar que as culturas sempre foram inclinadas a impor transformações a outras culturas. No entanto, para o ocidental, o oriental é sempre parecido com o ocidente em algum aspecto.
Os dados empíricos sobre o oriente ou sobre qualquer das suas partes contam muito pouco, o que importa e é decisivo é o que Said chama de visão orientalista, uma propriedade comum de todos os ocidentais que pensaram no oriente. Isaiah Berlin escreve: conhecer o lugar cósmico de uma coisa ou pessoa é dizer o que esta coisa ou pessoa é e faz e, ao mesmo tempo por que deveria ser e fazer o que é e faz. Ser e ter valor, existir e ter uma função são uma única e mesma coisa. O padrão, e só ele, causa o surgimento e o desaparecimento e confere um propósito, quer dizer, valor e sentido, a tudo o que há. Entender é perceber padrões. Quanto mais inevitável se possa mostrar ser um acontecimento ou uma ação ou um caráter, melhor terão sido entendidos, mais profunda será a perspicácia do pesquisador, mais perto estaremos da verdade suprema. Esta atitude é profundamente antiempírica.
Esta é de fato a atitude orientalista: compartilha coma magia e a mitologia o caráter autocontido e auto-reforçado de um sistema fechado, no qual os objetos são o que são porque são o que são, agora e sempre, por razões ontológicas que nenhum material pode remover ou alterar.
Não precisamos procurar por uma correspondência entre a linguagem usada pra descrever o oriente e o próprio oriente, não porque a linguagem seja imprecisa, mas porque ela não está nem sequer tentando ser precisa. O que ela está tentando fazer é caracterizar o oriente como estrangeiro e, ao mesmo tempo, incorporá-lo esquematicamente a um palco teatral cuja audiência, administrador e atores são para a Europa e só para ela. Daí a vacilação entre o familiar e o estrangeiro. Maomé é sempre o impostor (estrangeiro, embora ele seja em alguns aspectos como Jesus, não é como ele, no final de contas).

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